
Nos últimos dias, os nossos pensamentos cotidianos estão voltados para salvar vidas na grave crise do Coronavírus (Covid-19). Há inclusive no horizonte próximo a expectativa de que a agropecuária e o comércio varejista de bens essenciais, como os supermercados, serão afetados [1]. Salvar vidas e garantir o abastecimento contínuo de bens necessários à manutenção da vida humana se tornarão desafios cruciais na atual crise. Afinal, estamos enfrentando um cenário bem próximo ao de uma “economia de guerra”. Esse contexto exige uma eficaz coordenação institucional geral de esforços e a centralização de planos e ações no âmbito federativo.
Sobre a atual gravidade da crise do Covid-19, o jornalista Vinícius Torres Freire ponderou que “em momentos de calamidade oficial e similares, a lei prevê intervenções estatais na atividade econômica, as quais podem incluir tabelamentos ou requisições. Tabelamentos tendem a não funcionar, exceto em situações de guerra de fato. De resto, não adianta fazer requisições se não há produtos, assim como não adianta tabelar o preço do que não existe” [2]. Em síntese, ainda segundo o jornalista, que é mestre em administração pública, “são necessários o controle e o estímulo da produção de bens essenciais, a começar por aqueles de uso médico-hospitalar, caso não exista material suficiente para o serviço de cuidar dos feridos, doentes, e dar instrumentos aos profissionais da saúde. Esperar que a escassez também se espalhe de modo epidêmico é jogar com a morte”. Uma economia de guerra é uma economia de escassez na qual não se pode simplesmente ter mais armas e mais manteiga ao mesmo tempo.
Em uma nota recentemente divulgada, chamamos a atenção para a perspectiva do risco de uma pressão inflacionária, mais particularmente para os alimentos e insumos brutos de produção, ressaltando também o desafio logístico em tempos de economia de guerra [3]. Afirmamos então que a crise do Covid-19 exporia diversas fragilidades brasileiras, inclusive as fragilidades e vulnerabilidades que cresceram com a agenda das reformas liberais desde 2016: deterioração geral da qualidade dos serviços públicos, informalidade laboral e desigualdades sociais. Essas fragilidades e vulnerabilidades cobrarão um preço alto na atual crise, principalmente quando consideramos o longo e trágico processo de desindustrialização precoce da economia brasileira, ou seja, as perdas e ausências de capacidades produtivas domésticas mais sofisticadas. Essas perdas e ausências de capacidades produtivas dificultarão processos de reconversão industrial para o enfrentamento da crise do Covid-19 no Brasil.
O economista José Roberto Afonso, professor do IDP, em entrevista, foi enfático ao defender que Brasil precisa estruturar logo uma economia de guerra durante a crise do Coronavírus [4]. Por economia de guerra, Afonso compreende que as empresas devam mudar o enfoque de suas atividades para ajudar o país. Como exemplo prático, fabricantes de automóveis poderiam fazer ambulâncias e fabricantes de roupas, equipamentos para profissionais de saúde. Segundo Afonso, “tem que ter disposição e criatividade”. O problema central da falta de coordenação geral de esforços federativos foi objeto de reflexão na entrevista. Para Afonso, “enquanto o governo federal está meio perdido, estados e municípios estão agindo, até porque eles têm que agir, não têm nem muita opção”. Em relação ao problema, o professor afirmou que o Brasil possui algumas experiências históricas de enfrentamento de crises, como foi o caso do apagão energético de 2001 e as suas decorrentes medidas de racionamento.
Em entrevista recentemente concedida, o governador capixaba Renato Casagrande afirmou “que é um falso dilema a ideia de que é preciso equilibrar medidas para fomentar a economia e conter a propagação do vírus” [5]. O governador capixaba destacou ainda que há falta de uma efetiva coordenação nacional da parte do governo federal e disse que o mesmo não pode simplesmente repassar responsabilidades para os governos subnacionais. Questionado sobre o pagamento de indenizações aos trabalhadores paralisados durante a crise, o governador capixaba respondeu “quem tem de pagar é o governo federal. Ele que tem a capacidade de emitir título, de aumentar déficit, o governo federal tem o poder de fazer essa indenização ao setor produtivo”. Em termos macroeconômicos, as margens de manobra são bem maiores na instância federal.
Do ponto de vista das margens de manobra fiscal do Estado-nação, o professor emérito Robert Skidelsky, da Warwick University (UK), diz que “o que um governo pode pagar é limitado apenas pela quantidade de recursos reais que pode comandar, e não por restrições financeiras autoimpostas” [6]. Ainda de acordo com o professor, que é considerado o maior biógrafo vivo do célebre economista John Maynard Keynes, o consumo privado precisa ser reduzido em uma economia de guerra, seja por preços ou tributos mais altos, preferencialmente pela tributação progressiva. Nesse mesmo sentido, as possibilidades de reconversão de sistemas produtivos para a economia de guerra deveriam estar sendo objeto de mapeamentos, planos e ações no Brasil. De certa maneira, outros países estão buscando empreender grandes esforços nessa direção.
A França, por exemplo, fabricará 10 milhões de máscaras por semana e Macron, o presidente francês, defendeu recentemente a “soberania nacional e europeia” [7]. Estima-se que a França precisa de 40 milhões de máscaras por semana apenas para o uso dos funcionários de hospitais e casas de repouso para idosos. O chefe de Estado ressaltou que “a França não pode mais ser dependente de outros países para a produção desse tipo de material”. Soberania nacional e autonomia tecnológica sempre foram cruciais no dissimulado e complexo jogo diplomático de poder no concerto das nações. Macron anunciou ainda a criação de um consórcio formado por quatro grandes grupos industriais franceses para produzir, “até meados de maio, 10 mil aparelhos de respiração artificial” a serem distribuídos nos hospitais do país. Segundo as informações públicas disponíveis, o consórcio, liderado pela Air Liquide, é integrado pela empresa de produtos elétricos Schneider Electric, pela fabricante de equipamentos para automóveis Valéo e a montadora PSA. Os respiradores serão fabricados em uma unidade da Air Liquide Medical Systems e uma da PSA, ambas na região de Paris. Como se sabe, Macron abandonou a agenda de reformas liberais.
O fenômeno histórico do subdesenvolvimento foi caracterizado pelos autores estruturalistas latino-americanos, principalmente na segunda metade do século XX, como um estado de dependência tecnológica e a busca desenfreada de sociedades periféricas pela cópia acrítica de padrões de consumo de países mais desenvolvidos. Esse é um drama que ainda assola o Brasil. No entanto, apesar da contínua descoordenação geral da parte do governo federal, há iniciativas relevantes em curso do ponto de vista de esforços de reconversão produtiva. Destacamos a parceria entre as empresas privadas e a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que produzirá protetores faciais para profissionais de saúde no Estado do Espírito Santo. O projeto conta com as parcerias da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), das empresas ArcelorMittal e Geocontrol e do grupo de desenvolvedores capixaba ProtetorES [8]. Há outras iniciativas importantes em curso, como, por exemplo, aquelas coordenadas pela Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos e Odontológicos (Abimo) e pela Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) [9]. O importante nesse enorme e complexo esforço federativo é ganharmos velocidade na reconversão produtiva, escala industrial para itens básicos à manutenção da vida humana e cobertura nacional de distribuição. Nesse sentido, a contínua descoordenação geral de esforços da parte do governo federal se mostra uma grave falha gerencial na crise presente. As Forças Armadas brasileiras poderiam estar mais presentes e integradas nos esforços federativos na crise do Covid-19.
Notas
[1] NEDER, V. FGV: coronavírus não pode ser desculpa; economia não ia acelerar como imaginado. Disponível em: < https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/30/fgv-coronavirus-nao-pode-ser-desculpa-economia-nao-ia-acelerar-como-imaginado.htm > Acessado em: 31/03/2020.
[2] TORRES, V. Economia de guerra contra o corona. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2020/03/economia-de-guerra-contra-o-corona.shtml > Acessado em: 23/03/2020.
[3] Disponível em: < https://jornalggn.com.br/economia-de-guerra/a-crise-do-covid-19-e-as-cadeias-de-suprimentos/ > Acessado em: 02/04/2020.
[4] Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/brasil-tem-que-estruturar-economia-de-guerra-durante-crise-do-coronavirus-defende-economista.shtml#?origin=folha > Acessado em: 02/04/2020.
[5] Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-nao-pode-ser-lider-de-faccao-na-crise-da-pandemia-diz-governador-do-es.shtml > Acessado em: 02/04/2020.
[6] SKIDELSKY, R. What Would Keynes Say Now? Disponível em: < https://www.project-syndicate.org/commentary/keynes-how-to-pay-for-war-against-covid19-by-robert-skidelsky-2020-03 > Acessado em: 31/03/2020.
[7] Disponível em: < http://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20200331-fran%C3%A7a-vai-fabricar-10-milh%C3%B5es-de-m%C3%A1scaras-por-semana-e-macron-defende-soberania-nacional-e-europeia > Acessado em: 02/04/2020.
[8] Disponível em: < http://ufes.br/conteudo/em-parceria-com-empresas-privadas-ufes-produzira-escudos-faciais-para-profissionais-de> Acessado em: 02/04/2020.
[9] Disponível em: < https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/urgente-por-conta-propria-setor-privado-inicia-a-reconversao-da-industria/ > Acessado em: 02/04/2020.
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